Fomos, eu e alguns integrantes da Defensoria Pública do Estado do Pará, ao Presídio Estadual Metropolitano III, o PEM III, com a finalidade de realizar atendimentos de pessoas que se encontram detidas “provisoriamente”.
Ao chegarmos às portas da Casa Penal, nos deparamos com a seguinte cena: um grande número de abutres, onde uma parte sobrevoava o presídio e a outra estava no solo, esta atacando ferozmente um rato. Tal cenário foi perfeito cartão de visita para o interior que nos aguardava.
Quando finalmente entramos, os funcionários do local nos disponibilizaram meios suficientes - cadeiras, mesas e internet - para que pudéssemos realizar nossa finalidade.
Enfim, iniciou-se o atendimento.
Cada pessoa que chegava para ser atendida parecia seguir, sistematicamente, o mesmo roteiro: a primeira parte, exclusivamente técnica, onde ansiavam por saber sobre como estava “andando” o seu processo e a segunda, emocional, onde víamos homens se transformando em crianças, pois éramos, claramente, uma das únicas formas de contato amigo com o mundo lá fora, com a sociedade, com seres humanos.
Nesse momento, passamos à, de fato, representar a Defensoria Pública e a Advocacia em toda sua completude, pois como diz esta bela trova espírita:
"Um sábio lançou na Terra
Este rifão lapidar:
Quem enxuga o pranto alheio
Não tem tempo de chorar”.
E as lágrimas daqueles homens eram diversas, as mais recorrentes diziam respeito à ausência familiar; ausência ou ineficiência do acompanhamento processual por advogado particular, onde as famílias gastaram suas últimas poupanças; esquecimento pelo Poder Judiciário, pois muitos se encontravam presos a mais de 4 (quatro) meses sem sequer terem tido a audiência de instrução e julgamento marcada. Sendo esta última uma clara à constitucional garantia do julgamento no prazo razoável (Pacto de San José da Costa Rica, artigos 7º, 5º, §2º última parte, em virtude do acolhimento por nosso artigo 5º, §2º da Constituição da República) e geradora da ilegalidade na prisão, em razão de constrangimento ilegal por excesso de prazo (artigo 648, inciso II do Código de Processo Penal) que poderá ser combatido via Habeas Corpus (artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição da República).
Em dado momento, ofereci, para um dos que estavam sendo atendidos por mim, um copo d’água. Ao beber, ele disse: “Isso parece refrigerante!”. E serviu um pouco ao outro detento...
É um local onde a tensão se torna uma constante.
Durante todo o atendimento, ouviam-se, vindo dos interiores das celas – que estava distante de nós pela simples existência de uma porta de ferro e algumas grades –, gritos, que mais se assemelhavam a urros de animais engaiolados, havendo ainda intenso barulho de agitação, gerado por choques entre objetos e o metal.
Chamo aqueles indivíduos de homens – até mesmo de forma insistente - apenas pelo fato do meu coração e todo meu ser se negarem à aceitar que são bichos, uma vez que a linha que separa, naquele local, o ser humano de um animal de cativeiro é tênue ao ponto de poder ser quebrada a qualquer instante, pois como já dizia, duramente, Manoel Bandeira em seu poema “O bicho”:
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem”.
Findo o atendimento, algo mais nos esperava, nos chamava. Tínhamos de ver o interior das celas para, assim como São Tomé quando necessitou ver as chagas do Homem, crer que ali comia, dormia e acordava um ser humano.
Subimos uma escada em espiral e, ao seu término, nos deparamos com um cenário que, quando recordo, me gela e entristece até o último fio de cabelo. Era um Zoológico, um Zoológico Humano!
O piso do segundo andar era feito de grades, onde ao fundo era possível observar pessoas andando. O cheiro era forte. Era de suor, urina, lágrimas e sangue. Alguns saíam e tomavam, em área reservada, o “banho” de sol. Esse era o lazer. Aqui cabe um questionamento: a garantia prevista pelo artigo 5º, inciso XLIX da Constituição da República, onde deveria ser assegurado aos presos a sua integridade física e moral, é letra morta ou assassinada?
Muitos desses indivíduos ainda não foram sequer julgados. São presos “provisórios”. Entretanto, as marcas que o cárcere deixa, não.
P.S.: Ao escrever esse pequeno texto, não utilizei praticamente nenhum conceito jurídico, pois queria empregar nele uma conotação social e até mesmo poética. Distanciando-me, assim, um pouco da, muitas vezes dura, letra da lei.
Portanto, minha principal vontade era a de demonstrar outro ponto de vista para o que está ocorrendo em nosso País.
Demonstrar que, embora a criminalidade esteja em franco crescimento, o Estado não pode aplicar sanções cruéis e até mesmo irracionais (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e” da Constituição da República de 1988).
Quando vivi a experiência demonstrada aqui, me vieram dois sentimentos: o primeiro de choque, pois - embora seja estudante da História das Penas e, em especial do Direito Penal e Processual Penal -, nunca pensei que um ser humano pudesse "sobreviver" a tal degradação.
O segundo sentimento foi medo, pois se realizarmos um perfunctório estudo sobre os julgados brasileiros será constatado que prisões preventivas são decretadas, em sua maioria, de forma não fundamentada, ou então baseada em argumentos inválidos.
Logo, gera medo saber que pelo simples fato do indivíduo ser investigado, de forma muitas vezes arbitrária, ele ficará em uma situação sob as quais nem os animais se encontram.
No papel o Brasil aboliu há muito as penas cruéis, mas no cárcere não é bem assim.
Penso, e a Constituição assegura, que se o Estado quer exercer seu constitucional poder de punir, ele deve se valer do devido processo penal legal, onde os Direitos e garantias do acusado devem ser respeitados e protegidos, pois, em última análise, se estará assegurando os da sociedade também.
Lucas Sá Souza.